'Missão suicida' e 'inferno na terra': os relatos de brasileiros que foram para o combate entre Ucrânia e Rússia
30/07/2025
(Foto: Reprodução) Os relatos de brasileiros que foram para o combate entre Ucrânia e Rússia
Brasileiros que sonham com a carreira militar têm visto na guerra entre Rússia e Ucrânia uma chance de ganhar experiência, defender uma causa e seguir com o que acreditam ser a própria vocação. Mais do que dinheiro, a decisão envolve idealismo e, principalmente, riscos.
Desde o início do conflito, estrangeiros se cadastram com facilidade para integrar o exército ucraniano. Ao chegar, no entanto, enfrentam uma realidade dura e traumática. De acordo com o Itamaraty, nove brasileiros já morreram em combate na Ucrânia, e outros 17 estão desaparecidos.
Na última semana, a família do mineiro Gabriel Pereira de 21 anos relatou ao g1 e à TV Globo que Gabriel Pereira foi recrutado por ucranianos no início do ano por meio de redes sociais e morreu em combate perto da fronteira com a Rússia (veja vídeo ao fim da reportagem). O corpo dele ainda não foi encontrado. Outro brasileiro, de Santa Catarina, está desaparecido.
Sobreviventes do combate
O g1 ouviu dois ex-combatentes brasileiros que sobreviveram e voltaram ao país. Com trajetórias diferentes, eles têm ponto em comum: ambos reconhecem o horror da guerra.
Um dos entrevistados é Wemerson Darlan, de 35 anos, mineiro de Belo Horizonte, que serviu por um ano na Guarda Nacional e era conhecido como “Dean Darlanw”. O outro, de 22 anos, preferiu não ter a real identidade revelada e será identificado nesta reportagem pelo apelido fictício "DC".
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Esta reportagem conta o caso dos dois brasileiros que voltaram da guerra a partir dos seguintes pontos (clique e vá direto ao tópico):
Os antecedentes
A ida para a guerra
Linha de frente
Pagamentos e gastos
A volta para casa
Combatentes brasileiros na Ucrânia; Dean Darlanw é o primeiro em pé à esquerda da foto.
Acervo Pessoal
Os antecedentes
O recrutamento acontece pela internet, em sites oficiais do governo ucraniano, e é amplamente conhecido por brasileiros interessados na carreira militar. Os candidatos preenchem dados e formulários antes de seguir para a Europa e, se aprovados, precisam arcar com os custos da viagem.
A maioria chega pela capital da Polônia, Varsóvia, e segue de ônibus até Kiev, onde assina contrato e passa por um treinamento básico com noções de primeiros socorros, guerra e armamentos.
Darlan permaneceu um ano na missão, entre fevereiro de 2024 e fevereiro de 2025.
"Fui na cara e na coragem. Paguei hotel por um mês até ser contratado. Na hora da assinatura, a tradutora tentou me desmotivar, disse para eu voltar, mas eu quis ficar", contou.
DC chegou à Europa em março de 2025 e ficou até julho. Passou cerca de 25 dias em Kiev antes de ser enviado ao front.
"Tivemos problemas com um dos líderes, que chegava a 'sair na mão' com brasileiros. Eu desloquei meu braço, fiquei quatro horas com ele deslocado, até me levaram para um médico civil que conseguiu resolver. Fiquei com braço enfaixado e ele me deu atestado de seis semanas e remédios, e o exército desapareceu com tudo. Tive que comprar outros do meu próprio bolso, sem nem ter receita", recordou.
Wemerson Darlan, combatente de 35 anos, conhecido como Dean Darlanw.
Arquivo Pessoal
A ida para a guerra
Após os contratos, os combatentes são encaminhados aos batalhões. DC foi alocado nos chamados batalhões de assalto — com foco em ações ofensivas. Já Darlan integrou a Guarda Nacional Ucraniana, segundo ele, mais voltada à defesa.
DC foi enviado à cidade de Izium, em uma base conhecida como "casa segura", com proteção e estrutura para alojamento, mas sem treinamentos oficiais por parte dos ucranianos.
"Teve um brasileiro e deu aula do básico de ucraniano pra gente, mas por conta própria. Teve um outro brasileiro que deu aula de drone, de AK, de outros tipos de armamento", contou.
Já Darlan revezava entre a capital Kiev (que não é considerada região de perigo, embora seja alvo de frequentes ataques russos) e Donbass, próximo à fronteira.
Vídeo abaixo mostra brasileiro que morreu na Ucrânia:
Brasileiro que morreu na Ucrânica compartilhava rotina nas redes sociais
Publicações dos recrutadores nas redes sociais divulgando a viagem.
Reprodução
Linha de frente
Na linha de frente, DC afirma ter tido problemas com os equipamentos fornecidos, alguns inclusive com manchas de sangue.
"Para conseguir equipamentos melhores, tinha que comprar do próprio bolso", relembrou.
Da casa segura de Izium, DC foi enviado à chamada "linha 3", a cerca de 12 km do front. As linhas são numeradas conforme a proximidade do conflito — a "linha 0" é a mais perigosa, colada à fronteira.
"Na linha 3 ficamos em uma trincheira com dois bunkers, construídas por brasileiros, por cerca de 50 dias. Ficamos ali treinando e esperando até chegar o dia em que seria mandado para a missão, na linha 0", relembrou.
O rodízio era semanal: cada trio de soldados que estava nas trincheiras passava dez dias na linha 0.
"No final, fomos percebendo que todo mundo foi indo, mas ninguém voltando. E, quem voltava, estava ferido, perdeu as pernas, tinha sido baleado, atingido por granadas", contou DC.
Já Darlan, em Donbass, ficava a cerca de 20km do front da guerra e na trincheira, a cerca de 5km da linha 0. Ele, por outro lado, relata ter recebido treinamentos e que estava preparado para os combates - mas, ainda assim, se impactou com as cenas que viu no confronto.
"No meio do caminho, tinham mais de 5 mil pessoas mortas. Imagina o inferno na terra. Não é para amadores. É uma guerra, então você vê de tudo: avião tacando bomba, drone, artilharia. É ataque toda hora", narrou Darlan.
Brasileiros são recrutados para seguiram para a Ucrânia por meio das redes sociais.
Reprodução/Redes Sociais
Pagamentos e gastos
Os contratos previam pagamentos diferentes para cada um dos combatentes. Muitos chegam esperando receber em dólar, mas os salários são pagos em grívnas (moeda ucraniana, atualmente cotada em cerca de R$ 0,13).
DC se queixa que os salários pagos eram muito inferiores aos prometidos, e também denuncia que precisou arcar com vários custos durante a estadia.
"Mandavam comida, mas estragavam rapidamente, porque não tinha geladeira. Aí tinha que tirar do próprio bolso para comprar mais. [...] Fazíamos vaquinha para comprar algumas ferramentas e equipamentos. Mas era isso: ou passava fome e comprava o capacete, ou não passava fome e não comprava o capacete", resumiu o ex-combatente.
Darlan, por sua vez, diz não ter tido problemas com pagamentos e que todos os materiais necessários foram fornecidos, sem gastos essenciais extras.
A volta pra casa
O contrato prevê o tempo mínimo de seis meses de serviço. Apesar disso, ao presenciar amigos e colegas morrendo, DC decidiu voltar para o Brasil por conta própria. Ele aproveitou um dia de retorno à casa segura, em Izium, e fugiu. Depois de seguir um longo caminho por países da Europa, conseguiu retornar ao Brasil.
"Você vai morrer ali, seu corpo não vai ser resgatado, sua família vai tentar resgatar, perguntando por que você foi, perguntando o que fez de errado", diz DC.
Darlan serviu por um ano, então o tempo mínimo de contrato já havia sido cumprido.
Ao presenciar a morte do melhor amigo no front da batalha, resolveu retornar ao Brasil. Conversou com o comandante e conseguiu retornar, sem intercorrências.
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